Aqui escrevem dois jovens, negros e Baianos. O dendê é o que nos guia, conecta e marca. Vamos juntos te contar uma história, um Itan. Numa narrativa sem início, meio ou fim vamos comunicar e refletir sobre a experiência de ser quem somos.
“Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
Que a Bahia já me deu
Régua e compasso”Gil embala o início da nossa viagem.
E quão difícil ainda é falar de nós mesmos… Corpos: distorcidos por estereótipos sociais, história: editada por uma amnésia convenientemente programada para apagar nossa realeza, mente: atrofiada por estruturas e narrativas genocidas. A mulher com nome africano ocupando espaços de poder – que ela mesma não se sentia capaz, o menino periférico que subverte o status quo através de tecnologias ancestrais do seu povo… Falar sobre nós, é falar sobre muitos. Viemos de um território encantado, palco de fluxos e epistemologias únicas, que resistiram ao Atlântico e seguem resistindo aos tumbeiros.
Nossa reflexão é sobre sair dos padrões e recriar nossa própria identidade a partir de uma memória ainda incipiente. Por isso, antes de ir é necessário voltar. Dos Malês à Ordem da Boa Morte, da Revolta dos Búzios à do Buzu.

O Atlântico é o segundo maior oceano do planeta Terra: cobre 20% de nossa superfície e abriga grande parte da biodiversidade marinha do mundo. Foi por ele que mais de 12,5 milhões de pessoas, durante as 29 mil travessias, foram transportadas de África para as Américas – a maior migração forçada na história da humanidade. Assim o mundo foi profundamente modificado.
O Comércio Intercontinental de escravos Africanos acontece, legalmente, de 1500 à 1888. E só é adotado após o processo de “ocupação produtiva” europeia nas américas resultar no genocídio em massa dos povos originários.

“Nesse processo, a uma certa altura você não tem mais volta. […] imagina o seguinte: o Anchieta fala em 30 mil mortos indígenas, mortos por varíola no recôncavo baiano – não dá nem pra enterrar todo mundo!” Carlos Fausto em “Guerras do Brasil.doc”, ep. “Guerra da conquista
Acredito que você já conheça esses fatos, não vou me alongar muito. Os números e as narrativas sobre essa época são bem conhecidas, a sensatez e moralidade geram um repúdio quase que uniforme. O problema é que, infelizmente, muitos chegam a uma leitura um pouco confusa dos fatos.
As informações que apresentei, e que você provavelmente conhece, são sobre a atividade econômica (compra e venda de pessoas para o trabalho forçado) não são sobre a escravidão. Essa equiparação é uma análise incompleta, uma cortina de fumaça. Nos leva a crer que a ilegalidade do “Comércio Intercontinental de escravos” significou o fim da escravidão em si, direciona nosso descontentamento e rancor só a um sistema impessoal e ultrapassado.
Racismo é ação, para existir precisa de alguém e sempre falamos sobre o outro – o sistema, o agressor, as pessoas no poder, etc. Entender o racismo é primeiro se entender como racista – porque o primeiro passo para mudar o mundo é mudando a si mesmo.

Por mais de 400 anos o Atlântico foi convertido em túmulo para 1,8 milhões de pessoas (10% – 20% não resistiam aos dois meses de travessia). Como a sociedade aceitava isso? Porque a população escravizada (que em muitos momentos foi maioria da população Brasileira) não fazia uma revolução e acabava com aquelas condições precárias de vida? Muitas são as dúvidas, mas é certo que domar o espírito humano não é fácil. O ocidente passou mais de 350 anos criando e aprimorando estruturas capazes de manter e ampliar essa atividade econômica – o trabalho escravo, que como qualquer outro tipo de trabalho, é uma atividade econômica.
“A atividade econômica […] gera riqueza mediante a extração, transformação e distribuição de recursos naturais,[…] tendo como finalidade a satisfação de necessidades humanas, como educação, alimentação, segurança” Atividade econômica – Wikipédia, a enciclopédia livre
Em 1800 (perto da abolição da escravatura) o mundo já conhecia os carros Ford, a Inglaterra estava extasiada com a tecnologia, no meio da segunda revolução industrial os preços baixos do açúcar produzido com mão de obra escrava era uma ameaça a economia dos países em desenvolvimento. Assim, os ingleses – que ainda dominavam grande parte das rotas marítimas mundiais – resolvem fazer pressão para o fim da escravidão. Nos próximos anos, 60% da mão de obra traficada de África era infantil, já que comiam menos e cabiam em maior quantidade nos navios. Ganhava-se no atacado! Com a sofisticação da sociedade baseada em relações de compra e venda, a economia se torna uma entidade cada vez mais complexa. Seu desenvolvimento é sempre hiperativo (a ponto de nos últimos dois mil anos o PIB mundial ter crescido 342,7 vezes enquanto a população crescia 26,5) e as consequências são sempre encaradas como efeito colateral – mas o primordial é “prosperar”.
Foi respondendo a urgência – criada por nós – de desenvolvimento econômico que o tráfico internacional de pessoas surgiu e, também devido a ela, foi proibido a 130 anos atrás. Hoje os horrores do Brasil Colônia parecem distantes. Hoje um acontecimento desses é impensável… certo? Nós nunca seriamos capaz de apoiar algo assim, não é?
O mundo muda.. e nós mudamos junto com ele? Na semana passada os dados do IBGE foram largamente noticiados e celebrados “pela primeira vez na história do país, negros são maioria nas universidades públicas”, mas ser noticiado só comprova ser uma exceção, a anormalidade em questão. A regra são séculos de escravização – física e simbólica – e genocídio.

Hoje, após os 388 anos de trabalho intenso, as estruturas criadas para manter e aprimorar a escravidão foram denominadas de “Racismo”. Tais estruturas, cristalizadas e absorvidas pela sociedade, são sistemas responsáveis por manter o statu quo e aumentar a eficiência econômica – você já conhece essa agenda, né?
“É ser contra a corrente
Ser a própria força, a sua própria raiz
É saber que nunca fomos uma reprodução automática
Da imagem submissa que foi criada por eles
Foda-se a imagem que vocês criaram
Não sou legível, não sou entendível
Sou meu próprio Deus, meu próprio santo, meu próprio poeta” BB King, Baco Exu do Blues.
Só a 130 anos conquistamos o direito de ninguém mais poder comprar e vender pessoas como eu, a 83 nos tornamos “cidadãos completos” (tivemos direito a voto), nossa história é uma luta constante para que possamos ser lidos e respeitados como qualquer outro ser humano. Nossa principal atividade segue sendo hackear o sistema, para quebrar tais construções e criar novas narrativas. E você, o que está fazendo contra o racismo?
“Numa sociedade racista, não basta não ser racista é necessário ser antirracista” Angela Davis
Nossa ciência, língua e cultura foram construídas para manter pessoas negras cativas, compulsoriamente produzindo riquezas e entretenimento à classe dominante. A exploração de pessoas como eu é a base da nossa forma de sociedade, nascer nesse contexto é ter essa faísca racista em todos nós. Nunca tinha refletido sobre isso? Vive confortavelmente no mundo como ele é? Não vê problema nas coisas como elas são? Cuidado!
Enfrentar o racismo é um trabalho diário, é bater de frente com a visão de mundo através da qual fomos ensinados a ver. É ser consciente e subversivo. Quando somos passivos (não refletimos ou não agimos) somos coniventes com essa construção histórica. Ser conivente, é apoiar. E todos os apoiadores são responsáveis pelo extermínio e manutenção da escravidão da população negra, todos são figuras ativas na edição conveniente dos fatos.

Necessitamos ouvir e transcender fronteiras. Precisamos chegar aonde não temos chegado, tomar atitudes, se propor a errar e compartilhar. Pois ainda é tempo de urgência, vidas estão sendo ceifadas a todo momento. Quando os tumbeiros ainda cortavam o Atlântico 14 de nós eram atirados ao mar por dia, hoje (segundo o SIM, Sistema de Informações sobre Mortalidade) são cerca de 118 mortes por dia – quase 5 negrxs por hora, mais de 42 mil por ano.
Já li em alguns lugares que a sociedade “errou” com o povo negro, que acontecem/aconteceram “fatalidades” ou “tragédias”. Não se engane. Quando eu e os meus somos sistematicamente mortos, excluídos e invisibilizados, o sistema tem funcionado de forma coerente – porque foi criado para isso. Mas a nossa história é sobre pessoas, os que lutaram e lutam pela sobrevivência. Já ouviu falar dos Malês? ou sobre as corajosas mulheres da Irmandade da Boa Morte? Conhece as histórias de como a Bahia conseguiu a independência de Portugal antes do resto do Brasil?
A história que queremos contar é sobre nós (eu e você), porque entendemos que enfrentar este problema é responsabilidade de todos, que quando não agimos o racismo age por nós. Ativistas antirracistas, precisamos agir!
REFLEXÕES PARA ATIVISTAS ANTIRRACISTAS:
- Quais são os meus privilégios? De que forma posso utiliza-los para criar oportunidades para os que históricamente não tiveram?
- Tenho participado e promovido diálogos que são sensíveis às realidades locais?
- O que é interseccionalidade e como isso pode me ajudar a ser um ativista mais humano?
- Quando falo, a forma e o conteúdo são inclusivos e acessíveis a todxs?
- Tenho cedido a fala para pessoas que sistematicamente foram silenciadas?
- Existem desigualdades, meu ativismo trabalha ativamente para reduzi-las ou é inconsciente e só piora o contexto atual?
- Aquí vimos um pouco sobre a agenda do desenvolvimento e suas consequências. Como ativistas ambientais falamos muito sobre Desenvolvimento sustentável, para não repetir os erros do passado é necessário que nos perguntemos: Desenvolver o que? Para quem? Quem mais se beneficia com isso? Quem será explorado para que esse desenvolvimento ocorra? Que tipo de assimetrias estamos criando, reparando e piorando?
- Quando discutimos sobre a “Crise climática”. Quem são os principais responsáveis? Quem são os que sofrem e sofrerão intensamente? Os acordos que foram firmados ajudam/salvam quem e o que? As articulações para resolver essa problemática é inclusiva? Ela repara assimetrias ou só piora as já existentes?
- Quando se trata de questões ambientais de quem é o protagonismo dessa voz? Como faço para amplificar as vozes dos grupos que estão na linha de frente? Tenho chamado elas para as discussões e quando necessário cedido espaço para que elas o ocupem?
- O capitalismo se apropria sistematicamente dos valores e símbolos culturais de povos até então subjugados. Como posso apoiar essas comunidades? (faça seus diêros circularem entre pessoas que estão pautando o que você acredita!)